SOMOS TODOS CHARLIE.

rubenoppenheimerHá muito não alimento o meu blog. Peço desculpas aos meus ocasionais leitores. Pouco importam as razões (diversas) pelas quais deixei de escrever neste tempo. Mas, ontem, no meio da enorme tristeza que senti pela barbárie cometida contra os humoristas do Charlie Hebdo, senti vontade ou inspiração para retomar esse encontro com leitores que, na sua grande maioria, sequer conheço.

Qual a relação entre um blog escrito por um pediatra e um ataque feito por terroristas fanáticos?  Enquanto eu ainda estava chocado com o tamanho da violência, me ocorreu que estes homens foram, um dia, crianças. Daí me perguntei: o que faz com que uma criança se torne um adulto fanático? É pouco provável que seja uma predisposição genética. Se não é genético, deve ser algo transmitido pela educação, cultura e meio ambiente. Foi essa associação que me estimulou a escrever, manifestando toda minha tristeza e choque, com o pensamento voltado à prevenção da intolerância. Foi o modo que encontrei de, ao meu modo, homenagear os que tiveram a sua vida violentamente interrompida só porque pensavam de um modo diferente de outros homens. Portanto, meu post de hoje é sobre a prevenção da intolerância ou o respeito à individualidade, diferença e liberdade de expressão.

Uma criança não é intolerante. Ainda que possa morder um colega na creche, pegar o brinquedo de outro e puxar o cabelo da irmã, esses atos não são de intolerância. São a expressão de um sentimento de propriedade, territorialidade, ciúmes etc. A intolerância é ensinada, sutilmente pelos pais. Esse é o ponto que gostaria de chamar a atenção. A criança aprende a ser intolerante! Como? Ouvindo comentários preconceituosos ou assistindo a comportamentos desrespeitosos. Crianças percebem as sutilezas e captam, muito mais do que imaginamos, o que é dito e feito por nós, adultos. Mais, prestam uma atenção doida na conversa de adultos. Assim, comentários que depreciem gênero, orientação sexual, religião, cor, nível social, aparência etc. são absorvidos pelos nossos filhos como sendo “o certo”. Se temos atitudes prepotentes, arrogantes, desrespeitadoras, agressivas com subalternos, prestadores de serviço, esse é o modelo que a criança incorporará como sendo o normal, adequado. Essa construção não se dá com um episódio ou comentário isolado, mas, à medida que a repetição (repito- sutil) forma um padrão, é esse modo de pensar que a criança vai tomar para si. Aos poucos a criança vai moldando o mundo como sendo composto por pessoas legais, com hábitos e gostos parecidos com ela e as outras, esquisitas, diferentes, “erradas”. É o que basta para que essa criança se torne um adulto intolerante e preconceituoso com relação às diferenças. E, mesmo que utilizando sua capacidade racional perceba que não há fundamento real nos seus preconceitos, terá uma dificuldade enorme de se libertar deles. Isso porque a intolerância não é formada nem está localizada no pensamento racional, mas, mora nas emoções. E, até hoje, pensar, se esforçar muito, não é capaz de alterar emoções arraigadas. Tanto mais que as emoções não obedecem à lógica. Se comportam mais como um vazamento de água. A água percorre o caminho possível até surgir no teto ou na parede. Frequentemente, para se identificar a origem de um vazamento é preciso se quebrar muito mais longe do que o ponto visível. Assim são nossas emoções. O preconceito é o vazamento visível. A origem nem sempre é acessível a nós.

Mas, se é preciso educar uma criança para que seja intolerante, é razoável supor que o oposto também é possível. Podemos educar nossos filhos para que sejam tolerantes. Para que percebam e registrem as diferenças, respeitando-as. Não significa, obrigatoriamente, concordar com as diferenças percebidas. Mas, aceitar que uma outra pessoa possa ter ideias, crenças, valores, hábitos e aparência muito diferente da nossa, sem que isso a faça errada ou pior do que nós. Por maior que sejam as diferenças, continuamos todos a sermos seres humanos. Nisso, somos iguais, para sempre. Todos nós nascemos de uma mãe, aprendemos a andar e falar.  Todos precisamos respirar, comer, dormir, ir ao banheiro. Crescemos, alguns casam e têm filhos, talvez netos, mas, um dia, todos nós morreremos. Somos iguais ou não?

Como educar nossos filhos para que sejam tolerantes? O primeiro passo é olharmos para nós, com coragem. Que preconceitos trazemos da nossa educação, religião, cultura, meio social? Provavelmente não conseguiremos superá-los, mas, reconhecendo sua existência, podemos ficar atentos a não transmitir essa carga para nossos filhos. A gentileza com o outro, o cuidado no trato, a forma com que nos relacionamos e os comentários que fazemos, podem ser filtrados por esse nosso conhecimento dos pontos onde fomos inoculados com preconceitos. Desta forma, poderemos esperar que nossos filhos se tornem adultos tolerantes com as diferenças, defensores da liberdade para todos e, certamente mais leves e felizes porque o preconceito e a intolerância são um fardo desnecessário de se carregar.

Hoje, somos todos Charlie, símbolo da liberdade, criatividade e resistência a qualquer tipo de pensamento que fanatize o ser humano. Que mundo queremos para nossos filhos e o que estamos fazendo para que ele se realize?

15 comentários em “SOMOS TODOS CHARLIE.”

  1. Excelente Roberto. A ignorância muitas vezes raiz da intolerância deve ser combatida e esses posts são sempre benéficos. Todos temos algum tipo de preconceito e o reconhecimento é o primeiro passo para a cura. Continue inspirado. Vou compartilhar

    1. Dr. Roberto Cooper

      Alan,
      Obrigado por seu comentário gentil e motivador. Além disso, temos uma responsabilidade social de contribuirmos para uma sociedade mais justa, o que implica em aceitar diferenças e defender a liberdade de expressão.

    1. Dr. Roberto Cooper

      Realmente lamentável. Mais do que isso, trágico e triste. A pergunta é- como educarmos nossos filhos? Obrigado por participar do blog.

  2. Helena Masseo de Castro (psiquiatra e psicanalista, refletindo...)

    Muito bom! Excelente reflexão!!!
    Entrei no Google para pesquisar sobre intolerancia em psiquiatria, porque o sou, e também pra refletir sobre minhas intolerancias, e seu texto foi o primeiro que me chamou a atenção. Diferindo do que procurava, foi interessante oara se jintar ao que já refletia sobre mim e sobre intolerancia em psiq e psicanalise.
    Obrigada! E continue seu caminhar.

    1. Dr. Roberto Cooper

      Prezada Helena,
      Obrigado por seu comentário gentil. Fico feliz quando o que eu escrevo faz algum sentido para o outro. Volte sempre!

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