Cultura é o conjunto de comportamentos de uma determinada população, em uma época. Esta é uma definição
simplista, portanto incompleta e superficial do que seja cultura. Mas, seu uso é apenas para este post, sem pretensões mais profundas ou complexas.
Em geral, pensamos em cultura como algo externo a nós. Seja algo que aconteceu no passado, seja uma manifestação artística ou até um padrão de comportamento de outro lugar que não o que vivemos. Dificilmente nos percebemos como participantes da cultura. Mas, se cultura é o conjunto de comportamentos, os meus, obrigatoriamente, estão inseridos ou influenciados pela cultura. Alguns exemplos de como a cultura, até certo ponto, nos modela: hoje se uma menos do que há alguns anos atrás. Não só houve uma divulgação maciça dos malefícios do fumo, como os não fumantes se tornaram mais intolerantes com os fumantes. Em contrapartida, comemos mais fast food do que nunca. A saúde virou item de consumo e há uma pressão para que nos exercitemos. Em alguns momentos, a tecnologia contribui para uma introdução de novos hábitos que, ao se tornarem rotineiros, se integram na cultura. A luz elétrica permitiu que nossos dias acordados fossem mais longos. Com isso, ganhamos lazer, diversão, trabalho e perdemos sono! A pílula anticoncepcional não mudou a libido das mulheres, apenas fez com que o medo da gravidez, que moderava o comportamento feminino, fosse superado. A informática nos conectou 24 horas por dia, 7 dias na semana. Compramos livros às 3 da manhã, como se sempre tivesse sido a coisa mais natural do planeta! Poderia encher o post de exemplos de como a cultura está dentro das nossas vidas, determinando comportamentos que consideramos naturais. Cultura não é aquela coisa de museu. Cultura é a vida que levamos, todos os dias.
Com a revolução industrial surgiu a necessidade de desenvolvermos mecanismos de controlar e garantir a qualidade, lucratividade e sustentabilidade das empresas. Nascia a administração de empresas com uma série de ferramentas indispensáveis. Estas foram se sofisticando à medida que a tecnologia permitia mais velocidade e complexidade (já houve uma época em que uma HP12C era a ferramenta do gestor!) no processo de coleta de dados e tomada de decisões. O mundo percebeu a enorme vantagem de negócios bem administrados: lucro, assegurando crescimento, inovação e mais empregos. Planilhas Excel e Powerpoint passaram a fazer parte da vida do gestor. Eficiência, eficácia e um mundo de palavras em inglês foram incorporadas à vida cotidiana: downsizing, outsourcing, P&L, EBITDA, team building, deliver, mission, vision, values e por aí vai.
Até aqui tudo bem. A questão é quando uma determinada prática, desenvolvida para um cenário, se esparrama e ocupa a vida, sem nos darmos conta. Ou, pior, nos damos conta e achamos que isso é bom. Famílias passaram a responder à lógica dos negócios, se parecendo com empresas. Os pais fazem o equivalente a um business plan, definindo o momento ótimo de ter o primeiro filho. Este, nascerá de parto cesáreo numa sexta à tarde, o que permitirá ao pai estar lá, sem perder a reunião de diretoria. A mãe e o bebê terão alta no domingo. Logística perfeita. Quando o bebê nascer, mãe e pai já terão feito uma análise das diversas formas de se cuidar de um bebê e terão optado por um dos diversos métodos disponíveis em livros e, sobretudo na internet. Antes do nascimento, já terão escolhido escolas, baseado na melhor relação custo/benefício de aprovação no vestibular.
O bebê chega em casa e, infelizmente, não fez a Harvard School of Business. Ele ainda não sabe desse mundo eficiente, competitivo, meritocrata, onde o empreendedorismo é premiado. Ele sabe mamar, chorar e fazer cocô. Não necessariamente nesta ordem. Não necessariamente em ordem alguma. Por mais que os pais coloquem as mamadas e trocas de fralda em aplicativos de previsão, nada parece funcionar. Um recém nascido é um rebelde por natureza, se parecendo mais com a meteorologia (imprevisível) do que com o budget forecast! Os pais entram em pânico e resolvem terceirizar o cuidado para quem sabe. O princípio da expertise, da especialização, entra em cena. Uma babá experiente é o que precisam. Melhor ainda se a babá se apresentar com um cartão de visitas que diz – Enfermeira. Algo como você ser recebido pelo gerente do banco cujo título é Vice-Presidente de Relacionamento Pessoal! Os pais acreditam que aquela empresa (Enfermeira S.A.) tem o know-how necessário para cuidar do bebê. Coisa que, apesar das tentativas feitas, eles se mostraram incompetentes. Afinal, Enfermeira S.A. está no mercado há tantos anos, certamente sabe mais de bebês do que eles, pais de primeira viagem. Claro que ela sabe mais de bebês, no plural, mas, não sabe nada sobre aquele bebê, singular.
Os finais de semana são planejados em função de melhor otimização do tempo. Não há tempo para se perder, nunca. Viagens são feitas de acordo com a melhor época para se fazer compras, rentabilizando cada centavo. Informática e eletrônica são oferecidos à criança para que se familiarize com o mundo e possa se tornar competitivo. Livros e sucata doméstica, são coisas ultrapassadas, uma perda de tempo.
À medida que a criança cresce, passa a ter uma agenda de executivo. Escola todas as manhãs, tênis às segundas e quartas, judô ou ballet terças e quintas, inglês quartas e sextas e, pelo menos uma atividade para o desenvolvimento das habilidades de mentais e de cálculo. O mundo é assim, gostemos ou não, suspiram os pais, orgulhosos.
E assim, segue a Familia S.A., sem se dar conta de quanto a cultura empresarial invadiu a vida privada de todos nós. É claro que planejar é preciso. Assim como controlar o orçamento doméstico e fazer escolhas a respeito de escolas e atividades. É óbvio que a tecnologia é um enorme avanço e faz parte da vida , incluindo a das crianças. Mas, Familia S.A. não tem algo fundamental para o desenvolvimento do ser humano: vínculo e afeto.
Vínculo e afeto acontecem quando a lógica não é a da preformance, das metas e resultados. A lógica é do relacionamento. Relacionamento é lento. Relacionamento é difícil, exigindo respeito à individualidade do outro. Relacionamento é colocar limites e elogiar. Relacionamento é emocionar-se, rir e chorar juntos. Relacionamento é ilógico e irracional, às vezes. Como sentar juntos, em silêncio, e ambos olharem na mesma direção.
Na vida em família significa aprender com o bebê, confiando no que sabemos como humanos. Se traduz em sentar para ler um livro, sem pressa, ou brincar deitado no chão com uma caixa de ovos vazia e um barbante. Jantar juntos, sem TV ligada, sem celular, conversando. Perguntar sobre a escola, cobrando performance, mas, querendo saber se está feliz. Mudar um plano porque algo mudou, inesperadamente.
Família não é meta a ser atingida, é prazer a ser vivido. Sejamos eficientérrimos nos nossos trabalhos. Na família, sejamos amorosos.
6 comentários em “FAMILIA S.A.”
Dr. Roberto:
Esta pensata foi genial, você está se revelando um verdadeiro filósofo !
Você fez uma descrição magnífica desta pressão a que somos jogados (ou nos jogamos espontaneamente).
Eu mesma admito que fui impulsionada a agir desta maneira “empresarial” quando me tornei mãe. (Quando eu estava grávida, uma das coisas que ouvi foi se eu já tinha agendado uma sessão de fotos da barriga, se já ia fazer o curso de amamentação e mais outros itens).
Depois do nascimento do Henrique, tentei me rebelar contra esta pressão da perfeição, mas acabei aderindo. Aí me rebelei, fui pressionada a aderir, vacilei e aderi de novo. Agora estou tentando me rebelar novamente e tentar ser apenas a melhor mãe que eu puder ser. Enfim, estou tentando sobreviver a este tsunami em que a vida moderna se tornou.
Ah, lembrando que esta pressão não é só no quesito “Família S.A.” não. Mesmo antes de termos filhos, já temos que ser perfeitos, planejados. E sendo mulher, pior ainda. Além de ter que ser eficiente em tudo, tem que estar sempre magra, de salto alto e com o cabelo escovado, etc. e etc. ! Ufa ! Eu não consigo cumprir tantas metas. Engordei e não tenho tempo pra escovar este cabelo.
Desculpe o longo desabafo. Mas espero que com o seu trabalho filosófico aqui no blog você possa contribuir para atenuar a angústia da perfeição que atormenta tantos pais e, em maior escala, as mamães.
Lorelai,
Sua participação no blog é sempre muito boa. Tenho a certeza de que inspira outras mães, com o seu depoimento. Quanto a mim, só posso agradecer suas palavras sempre gentis (e exageradas!).
Verdade! 😀 infelizmente, este é um problema cada vez mais comum em nossa sociedade, não apenas no consultório dos médicos, mas sim, na sociedade em geral. Quantas vezes não conhecemos alguém que já foi vítima de algum tabu ou preconceito? Ou quantas vezes NÓS mesmos já fomos vítimas de certo tabu ou preconceito, ou, pior, quantas vezes já os praticamos? Parece que a sociedade está ficando cada vez mais (in)tolerante, mesmo em meio à tanto suplício pela tolerância mundo afora? Pois é, devemos quebrar tabus e preconceitos, se quisermos ser pessoas melhores, e isso inclui tabus médicos, que, muitas vezes, podem atrapalhar a consulta, e, até mesmo, retardar algum tratamento médico, caso necessário 😉 mas também NÃO é bom superproteger a criança. Devemos ter mente aberta, caso queiramos viver na sociedade atual, cada vez mais em constante mudança, seja de cultura ou valores.
Rosita,
Obrigado por participar do blog. Sua contribuição certamente enriquece o que escrevo.
Como fazer um comentário que faça juz ao que eu acabei de ler? Quero parabenizar ao colega médico pela sensibilidade de escrever sobre sentimentos de uma forma tão verdadeira, numa sociedade cheia de receitas prontos e termos técnicos. Que ser humano admirável…
Prezada Claudia,
Muito obrigado por participar do blog e deixar palavras tão gentis registradas aqui. Fico muito feliz quando o que eu escrevo é útil ou faz algum sentido para quem lê. Volte sempre!