Quem me conhece pessoalmente ou lê o blog, sabe o quanto eu sou crítico com regras que têm um jeitão de coisa científica. Essas regras acabam circulando como dogmas ou verdades absolutas e que, quando não respeitadas, fariam com que as crianças irremediavelmente sofressem graves consequências e os pais morressem de culpa!
Para começar a expressão “regras científicas” constitui um paradoxo. A expressão reúne duas palavras que se opõem: regras e ciência. A ciência, por definição, não tem regras. A ciência é o melhor conhecimento possível, naquele momento. O conhecimento científico é mutável, evolui. Quando um suposto conhecimento se torna imutável, fixo, deixa de ser científico e passa a ser uma crença ou convicção. Nada errado em termos crenças e convicções. Todos nós, de um modo ou de outro, enxergamos o mundo de uma forma que vai ser a base de nossas crenças e convicções. O problema é quando estas se apresentam revestidas de um fino verniz de “científico”, para lhes dar mais credibilidade. Isso é fraude! Vou dar alguns exemplos no mundo da pediatria, usando perguntas que os pais frequentemente fazem.
Doutor quando é que ele pode sair de casa? Esta pergunta, habitualmente é feita por pais de bebês pequenos, na primeira ou segunda visita ao consultório. Costumo responder: “ele veio aqui hoje?”. Os pais ficam um pouco assustados e, em geral, riem quando falamos de um túnel invisível de proteção bacteriológica que liga a casa da família ao consultório do pediatra. Muitas vezes, essa pergunta é associada às vacinas. Mas, ele ainda não começou as vacinas! De fato, além da criança ter alguma imunidade transferida pela mãe, se fossemos esperar a vacinação produzir a plena proteção, uma criança só deveria sair de casa por volta dos 15 meses. Qualquer um lendo o blog balançará a cabeça- que absurdo! Pois bem, existem vacinas que só são dadas a partir do primeiro ano de vida e, nem por isso, os pais têm duvidas a respeito de sair na rua com seus bebês de de meses! Mas, vamos ser mais radicais e ver o exemplo dos finlandeses e outros países nórdicos onde é normal e faz parte da forma saudável de criar filhos, deixar os bebês dormindo do lado de fora da casa, em temperaturas bem abaixo de zero! Esta prática começou nos anos 40, porque a alta mortalidade infantil nesses países era atribuída à qualidade do ar do interior das casas. Hoje, mesmo com a qualidade do ar sendo boa, ainda existem algumas evidências (lá deles) de que esta prática é benéfica para os bebês, com a ressalva que devem estar agasalhados. Não vamos discutir se é bom ou ruim colocar um bebê para dormir em temperaturas abaixo de zero. Vamos pensar no choque que nos produziu alguém fazer algo tão diferente do que nós. Será que um bebê finlandês tem células diferentes de um bebê brasileiro? Ou será que nossas “regras” são fruto mais de tradição e cultura do que de evidências científicas?
Outra pergunta interessante é com relação à introdução de alimentos. Os pais, em geral, perguntam: “Vamos começar com frutas, não é? Quais podemos dar?” Esta pergunta faz supor que o pediatra tenha um conhecimento científico que justifique a escolha pela fruta A ou a restrição à fruta B. No Japão, a primeira refeição de um bebê, por volta dos 4 a 6 meses, se chama Okuizome (primeira refeição). É um ritual familiar onde a criança é apresentada a peixe, arroz papa, polvo, vegetais condimentados e …. umas pedrinhas para a criança morder porque promove a dentição (veja na foto o pratinho com pedrinhas!). Não tem banana, maçã e pera, nessa primeira introdução de alimentos para bebês japoneses. Dirão que fui buscar um exemplo extremo. No Kenya, o primeiro alimento é um purê de batata doce. Na Índia, oferecem um prato chamado khichdi que consiste em arroz, lentilhas, legumes, temperados com cumim, coentro, hortelã e canela. Isso, para um bebê de 6 meses. Na Suécia, o primeiro prato oferecido a um bebê que vai iniciar sua alimentação sólida, se chama välling , preparado à base de cereal (trigo), frutas, óleo de canola, de palma (nosso azeite de dendê!) e leite em pó. Será que os bebês apresentam um aparelho digestivo diferente, de acordo com a sua nacionalidade ou, nossas “regras” são baseadas na economia, cada país oferecendo o que tem em maior abundância ou facilidade de se encontrar? Onde ficam aqueles cardápios “científicos” para bebês em que se estabelece que agora pode isso, mas é melhor esperar para dar aquilo? E o que dizer de cursos de nutrição para as mães dos bebês?
Como todos nós temos interesse no pleno desenvolvimento do potencial de nossos filhos, sempre surge alguma pergunta relacionada ao que seria o brinquedo mais indicado. Brincar é uma atividade fundamental para o desenvolvimento da criança. É através do brincar que a criança aprende a respeito do mundo, da sua identidade, desenvolvendo habilidades psico-motoras, além de explorar causa e efeito. O brincar é tão importante para as crianças quanto o carinho, a alimentação e o sono. Não é um intervalo de diversão na vida das crianças, é parte fundamental desta. Aliás, pessoalmente, também acho que é parte fundamental da vida dos adultos, porque contribui para o estabelecimentos de vínculos sociais e afetivos, nos fazendo viver de forma mais prazerosa. Portanto, crianças brincam há milênios, com os mais diversos brinquedos, como este, na foto do lado, encontrado na Grécia e que tem aproximadamente 2900 anos! Hoje, dependendo da cultura local e dos recursos familiares, crianças da mesma idade brincam com brinquedos diferentes. Não há nenhum brinquedo que seja “cientificamente”melhor do que outro. E, se julgarmos que a tecnologia é uma aliada no processo do desenvolvimento através do brincar, o que pode até ser verdade, é importante lembrar que Michelangelo nunca brincou com um ipad, Einstein nem sonhava com um computador e Shakespeare não tinha a menor ideia do que seria um smartphone. Certamente brincaram, e muito bem, quando crianças, haja vista sua genial criatividade, quando adultos. O brinquedo deve provocar a criatividade da criança e não sua reatividade. Reagir apertando um botão, para ver uma estrela aparecer na tela, é interessante. Mas, criar um caminhão, a partir de uma embalagem de ovos, é algo bem diferente. Da próxima vez que alguém lhe sugerir um brinquedo que definitivamente desenvolve a capacidade, digamos de pensamento matemático, da criança, pergunte se Isaac Newton brincou com o sugerido! Essa pergunta vale para qualquer área que o brinquedo se proponha a desenvolver. Basta escolher qualquer pessoa de reconhecido talento nesta área, que tenha nascido antes de 1970 e perguntar se usou o tal fantástico brinquedo.
Como podemos ver, a realidade demole regras pseudo científicas. A realidade nos mostra que não há a menor necessidade de nos qualificarmos, fazermos cursos, contratarmos especialistas (incluindo pediatras) para nos ensinar o que já sabemos. Onde não há conhecimento científico estabelecido, vale a cultura, os valores familiares e pessoais, a ousadia de cada família para criar, modificar e seguir as suas próprias regras. Cuidar de filhos não exige mestrado nem doutorado. Exige afeto e a plena confiança nos seus sentimentos. É muito mais jazz (improviso) do que música clássica (partitura).
6 comentários em “QUANDO A REALIDADE DESAFIA AS “REGRAS CIENTÍFICAS”.”
Sensacional….adorei os comentários. …estou com um recém nascido em casa…e penso exatamente desse jeito….nao gosto de ” frescura ” ….. o artigo eh perfeito….
Prezado Marcelo,
Obrigado por participar do blog. Fico feliz quando o que escrevo possa ser útil para outras pessoas.
Perfeito. Os seus textos são sempre enxutos e diretos. Não nascemos sabendo ser pais e mães. E os nossos filhos, infelizmente, não vem com manuais a tira colo. Porém a nossa intuição, quando bem seguida, nos guia de modo certeiro ao que é melhor para nossas crias. Basta lembrarmos da regra de ouro de que tudo com moderação é opção masis acertada do que o udo ou nada. Mas o que percebo, isso partindo do meu circulo de amizades, das mães que conheço, que quase todas padecem de uma insegurança muito grande. O medo de errar, de não serem boas mãe ( e o que é ser uma boa mãe?), de não conseguirem educar e criar esses filhos, fazem com que as mesmas estejam sempre em busca de respostas para seus questionamentos. E principlamente, em busca de alguem que lhes diga o que fazer. Não nasci sabendo a maternagem. Estou aprendendo no meu dia a dia com meu lindo principe de 3 anos que me exige, constantemente, muito amor desciplina. Para ele e para mim. E agora com a chegada do segundo filho terei ainda mais aprendizado pela frente. Porém possuo o exemplo de 2 grandes mulheres na minha vida: minha avó materna e minha mãe. Ambas, cada um ao seu modo e dentro de suas limitações, me ensinaram o que fazer e principlamente o que não fazer em matéria de educação dos nossos filhos. E ainda bem que hoje podemos contar com o mundo virtual, que nos trazem esclarecimentos e ensinamentos. Como seu blog por exemplo. Parabéns pela bela iniciativa de ter criado esse blog. Nós mães de primeira veigem, agradecemos.
Prezada Ana Laura,
Obrigado por participar do blog e também por suas gentis palavras. Seu depoimento certamente vai contribuir para que outras mães se sintam mais seguras. Quanto à pergunta- o que é uma boa mãe, lembro o que Winnicott, um pediatra que se tornou psicanalista dizia: crianças precisam de mães suficientemente boas! Não mais do que isso.
Dr Cooper
Novamente, agradeço pelos seus textos. São profundamente esclarecedores e nos mostram a maternidade por uma ótima mais simples.
Gostaria de pedir uma orientação em relação a um assunto que muito se fala, mas pouco se explica: “regras” para visitar um recém nascido na maternidade. É verdade que devemos evitar que crianças visitem recém nascidos por serem grandes transmissoras de bactérias e vírus? Ou isso não procede?
Tenho dúvidas e minha filha nasce em poucos dias.
Muito obrigada pela atenção!
Att., Rafaella.
Prezada Rafaella,
Já deve ter percebido que desconfio de “regras”. No caso da visita ao bebê, é importante lembrar que esta é para quem o visita e não para o próprio. Sugiro que usem bom senso. Não proibiria uma criança saudável, principalmente se for um familiar próximo, de ver o seu parente recém nascido. Todos nós transmitimos bactérias e vírus e tem sido assim pelos últimos 150 mil anos. Sem “regras”, chegamos até aqui! Portanto, usem o seu bom senso e intuição. Sejam felizes com o nascimento da filha!